"A noite em que tudo começou" por B.Silva

02:13

 


Não sei de que forma se começa a contar a minha história. Vou começar desta forma, com 18 anos de idade e já na faculdade pensei pela primeira vez no suicídio. Não foi uma ideia que andou comigo durante muito tempo. Talvez um mês, no máximo. O motivo? Uma discussão com o meu pai, que até ao dia de hoje não teve solução, e um coração partido. Ainda hoje me pergunto se terá sido isso que levou ao aparecimento daqueles pensamentos ou se eles apareceram só por aparecer. Só porque tinham de aparecer…
              

               Há um ano e pouco voltou a acontecer a mesma coisa. Mas desta vez mais insistentemente. Não foi uma coisa que me largou passado um tempo. Foi como que um apêndice que se juntou a mim e que passou a fazer parte da minha vida. No início ainda deu para lutar contra aquilo. A faculdade, os amigos, as conversas, as coisas comuns ajudavam a que aquilo desaparecesse da minha cabeça. Mas no silêncio eu sofria com aquilo. Chorava todas as noites até adormecer a pensar naquilo. A pensar que me atirava de uma janela, que cortava os pulsos, que me atirava à linha do comboio… Coisas deste género. Todos os dias. A toda a hora. Desde que eu acordava até que finalmente adormecia. Até que chegou a um ponto em que já não era eu que controlava o apêndice, era ele que me controlava a mim. Aí abri-me e pedi ajuda médica. Mas mesmo aí não tive coragem de dizer o que pensava nas primeiras consultas. Fui fazendo de outros problemas o MEU grande problema e fui tratando de outros pequenos problemas pelo caminho. Foi quando ouvi as palavras psiquiatra numa consulta que percebi que a coisa tinha escalado para proporções maiores. Mesmo eu sabendo que aquilo estava descontrolado há já muito tempo. Mas nunca pensamos que estamos tão mal até outra pessoa nos dizer o quão mal estamos.

               Fui medicada. Um comprimido à hora do jantar. A dose mais baixa para começar. Nada aconteceu. Nada mudou. Os pensamentos intrusivos, chamaram-lhe assim, continuavam presentes e bem presentes. Enquanto isso o meu desespero só aumentava. Cada dia que passava era mais uma martírio para sair da cama de manhã e fazer algo com a minha vida que não fosse deixar-me levar por aqueles pensamentos. Comecei a afastar-me das pessoas. Não falava com ninguém. Mal falava em casa. Fechei-me numa bolha de sofrimento que era só meu e que só eu entendia. Dizia a mim mesma que continuava lá para toda a gente mas no fundo queria acreditar que era melhor sofrer sozinha do que acompanhada. Porque ninguém entendia a minha dor.

               Voltei à psiquiatra. Aumento de dose. Nada de novo. As coisas ficaram iguais. E eu fui piorando a passos largos. Os pensamentos, o apêndice, perseguia-me. Agora não me largava nunca. Eu não tinha descanso. Até que me passa pela cabeça o suicídio como solução para aquele sofrimento.  E assim foi. Sem contar a ninguém. Planeei tudo. Ia faze-lo sozinha em casa. Com comprimidos. Ia fazer com que a dor passasse finalmente. Passei os dias anteriores a ver a família que pude. Uma espécie de despedida. Já não havia nada que eu pudesse fazer. O apêndice tinha ganho a guerra.

               Dia x de x de 2020. Foi o dia em que tudo aconteceu. Só mudei um aspeto. Tinha a minha mãe em casa, não o iria fazer sozinha em casa. Esperei que a minha mãe adormecesse. Coisa que não foi difícil porque eu não dormia há 3 ou 4 noites já. Quando me apercebi que ela adormecera, fi-lo. Duas caixas de comprimidos com um copo de água. E depois esperei. Depois disso não me lembro de muito. Lembro-me de chamar a minha mãe e depois só tenho memórias da bombeira não me deixar dormir enquanto íamos a caminho do hospital. Lembro-me de ela só me largar quando eu lhe prometi que ia ficar boa. Se pudesse, hoje agradecia-lhe. Foi provavelmente das primeiras vezes que eu me lembro no meio de tudo que não estava sozinha. Mas foi no momento crucial.

Lavagem ao estômago. Lembro-me de não dormir nessa noite. Estive atenta a tudo o que fizeram naquela sala de hospital mas não me lembro de nada. Recordo-me de um médico vir falar comigo. O porquê de eu estar ali. Ao que eu respondi: “Tentativa de suicídio.”. Disse-me pouco tempo depois que eu seria enviada para um hospital psiquiátrico. E assim foi. Magalhães Lemos duas noites. Com ajuste de medicação. Foi provavelmente das primeiras vezes em que eu dormi alguma coisa em dias. Passados dois dias fui transferida para o hospital com ala psiquiátrica mais perto da minha residência. Internamento de 13 ou 14 dias. FOI O MELHOR QUE ME PODIA TER ACONTECIDO. Conheci pessoas que passavam pelo mesmo que eu e isso deu-me esperança. Deu-me forças para conseguir estar aqui hoje a escrever este testemunho. Foram dias difíceis. Uns dias piores, outros dias melhores. Uns dias choravam uns, outros dias choravam outros mas sempre senti que ali tinha uma família. Podia não ser a mais funcional de todas mas senti que tinha apoio para me levantar. Que tinha o que era preciso para me levantar a mim e para ajudar a levantar outros. Recordo esses dias com saudade. Não do internamento em si mas sim das pessoas. Sem elas não estaria tão bem como estou.

Acabados os 13 ou 14 dias tive alta. Vim para casa. Começar a vida de novo. Lembro-me que mandei logo mensagem aos meus amigos mais chegados. Fiquei a par das novidades todas. Dei grandes gargalhadas. E a vida foi voltando ao normal…

Passei por 10 psiquiatras e continuo no mesmo psicólogo. Todos eles foram importantes no meu percurso. Mas acima de tudo, a parte fundamental do processo da “cura” somos nós. Mais ninguém. Mais ninguém vai tomar os comprimidos por nós, mais ninguém vai sentir o que nós sentimos, mais ninguém vai lidar com as coisas por nós. Nós somos a chave para todo o processo. Desde o começo até ao fim. Hoje em dia sou uma mulher feliz. Não tenho problemas de maior, deixei uma cadeira por fazer na faculdade, estou a dias de voltar a repetir o exame de condução. Parece que tudo foi há muito tempo e passaram apenas meia dúzia de meses. O tempo torna-se o nosso maior aliado. Porque sem ele, nada disto é possível!

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