Não sei de que forma se começa a contar a minha história. Vou começar
desta forma, com 18 anos de idade e já na faculdade pensei pela primeira vez no
suicÃdio. Não foi uma ideia que andou comigo durante muito tempo. Talvez um
mês, no máximo. O motivo? Uma discussão com o meu pai, que até ao dia de hoje
não teve solução, e um coração partido. Ainda hoje me pergunto se terá sido
isso que levou ao aparecimento daqueles pensamentos ou se eles apareceram só
por aparecer. Só porque tinham de aparecer…
Há
um ano e pouco voltou a acontecer a mesma coisa. Mas desta vez mais
insistentemente. Não foi uma coisa que me largou passado um tempo. Foi como que
um apêndice que se juntou a mim e que passou a fazer parte da minha vida. No
inÃcio ainda deu para lutar contra aquilo. A faculdade, os amigos, as
conversas, as coisas comuns ajudavam a que aquilo desaparecesse da minha
cabeça. Mas no silêncio eu sofria com aquilo. Chorava todas as noites até
adormecer a pensar naquilo. A pensar que me atirava de uma janela, que cortava
os pulsos, que me atirava à linha do comboio… Coisas deste género. Todos os
dias. A toda a hora. Desde que eu acordava até que finalmente adormecia. Até
que chegou a um ponto em que já não era eu que controlava o apêndice, era ele
que me controlava a mim. Aà abri-me e pedi ajuda médica. Mas mesmo aà não tive
coragem de dizer o que pensava nas primeiras consultas. Fui fazendo de outros
problemas o MEU grande problema e fui tratando de outros pequenos problemas
pelo caminho. Foi quando ouvi as palavras psiquiatra numa consulta que percebi
que a coisa tinha escalado para proporções maiores. Mesmo eu sabendo que aquilo
estava descontrolado há já muito tempo. Mas nunca pensamos que estamos tão mal
até outra pessoa nos dizer o quão mal estamos.
Fui
medicada. Um comprimido à hora do jantar. A dose mais baixa para começar. Nada
aconteceu. Nada mudou. Os pensamentos intrusivos, chamaram-lhe assim,
continuavam presentes e bem presentes. Enquanto isso o meu desespero só
aumentava. Cada dia que passava era mais uma martÃrio para sair da cama de
manhã e fazer algo com a minha vida que não fosse deixar-me levar por aqueles
pensamentos. Comecei a afastar-me das pessoas. Não falava com ninguém. Mal
falava em casa. Fechei-me numa bolha de sofrimento que era só meu e que só eu
entendia. Dizia a mim mesma que continuava lá para toda a gente mas no fundo
queria acreditar que era melhor sofrer sozinha do que acompanhada. Porque
ninguém entendia a minha dor.
Voltei
à psiquiatra. Aumento de dose. Nada de novo. As coisas ficaram iguais. E eu fui
piorando a passos largos. Os pensamentos, o apêndice, perseguia-me. Agora não
me largava nunca. Eu não tinha descanso. Até que me passa pela cabeça o
suicÃdio como solução para aquele sofrimento.
E assim foi. Sem contar a ninguém. Planeei tudo. Ia faze-lo sozinha em
casa. Com comprimidos. Ia fazer com que a dor passasse finalmente. Passei os
dias anteriores a ver a famÃlia que pude. Uma espécie de despedida. Já não
havia nada que eu pudesse fazer. O apêndice tinha ganho a guerra.
Dia
x de x de 2020. Foi o dia em que tudo aconteceu. Só mudei um aspeto. Tinha a
minha mãe em casa, não o iria fazer sozinha em casa. Esperei que a minha mãe
adormecesse. Coisa que não foi difÃcil porque eu não dormia há 3 ou 4 noites
já. Quando me apercebi que ela adormecera, fi-lo. Duas caixas de comprimidos
com um copo de água. E depois esperei. Depois disso não me lembro de muito.
Lembro-me de chamar a minha mãe e depois só tenho memórias da bombeira não me
deixar dormir enquanto Ãamos a caminho do hospital. Lembro-me de ela só me
largar quando eu lhe prometi que ia ficar boa. Se pudesse, hoje agradecia-lhe.
Foi provavelmente das primeiras vezes que eu me lembro no meio de tudo que não
estava sozinha. Mas foi no momento crucial.
Lavagem ao estômago. Lembro-me de
não dormir nessa noite. Estive atenta a tudo o que fizeram naquela sala de
hospital mas não me lembro de nada. Recordo-me de um médico vir falar comigo. O
porquê de eu estar ali. Ao que eu respondi: “Tentativa de suicÃdio.”. Disse-me
pouco tempo depois que eu seria enviada para um hospital psiquiátrico. E assim
foi. Magalhães Lemos duas noites. Com ajuste de medicação. Foi provavelmente
das primeiras vezes em que eu dormi alguma coisa em dias. Passados dois dias
fui transferida para o hospital com ala psiquiátrica mais perto da minha
residência. Internamento de 13 ou 14 dias. FOI O MELHOR QUE ME PODIA TER
ACONTECIDO. Conheci pessoas que passavam pelo mesmo que eu e isso deu-me
esperança. Deu-me forças para conseguir estar aqui hoje a escrever este
testemunho. Foram dias difÃceis. Uns dias piores, outros dias melhores. Uns
dias choravam uns, outros dias choravam outros mas sempre senti que ali tinha
uma famÃlia. Podia não ser a mais funcional de todas mas senti que tinha apoio
para me levantar. Que tinha o que era preciso para me levantar a mim e para
ajudar a levantar outros. Recordo esses dias com saudade. Não do internamento
em si mas sim das pessoas. Sem elas não estaria tão bem como estou.
Acabados os 13 ou 14 dias tive
alta. Vim para casa. Começar a vida de novo. Lembro-me que mandei logo mensagem
aos meus amigos mais chegados. Fiquei a par das novidades todas. Dei grandes
gargalhadas. E a vida foi voltando ao normal…
Passei por 10 psiquiatras e
continuo no mesmo psicólogo. Todos eles foram importantes no meu percurso. Mas
acima de tudo, a parte fundamental do processo da “cura” somos nós. Mais
ninguém. Mais ninguém vai tomar os comprimidos por nós, mais ninguém vai sentir
o que nós sentimos, mais ninguém vai lidar com as coisas por nós. Nós somos a
chave para todo o processo. Desde o começo até ao fim. Hoje em dia sou uma
mulher feliz. Não tenho problemas de maior, deixei uma cadeira por fazer na
faculdade, estou a dias de voltar a repetir o exame de condução. Parece que
tudo foi há muito tempo e passaram apenas meia dúzia de meses. O tempo torna-se
o nosso maior aliado. Porque sem ele, nada disto é possÃvel!